
O velho Honório Gurgel sempre contava histórias para o seu netinho de nome Doso. Doso era magrinho e tinha um ligeiro aspecto de quem estava empoeirado. Menino que corria pelas matas frescas e mergulhava nos rios claros de São Luíz do Curu. Gurgel armava uma rede no quintal ou na área da frente, também chamado de terreiro, e o menino sentava do lado e pedia para o avô qualquer história que lhe fizesse pensar por muitos dias, numa certa força de mistério e encantamento.
– Em vô, e aquela lá em?
– Aquela o quê meu filho?
– A história que o senhor me disse, que os dois touros se bateram, como foi mesmo em vô?
– Ah sim! A cruz na estradinha né? Foi aonde os dois touros se bateram e por lá ficaram!
Daí então, o velho Gurgel tirava o cachimbo e o fumo de seu bolso da calça, preparava rapidamente e se punha a baforar lentamente aquela densa fumaça de forte cheiro. Todas as histórias que contava para seu neto Doso, era esse mesmo ritual. Quando passava de carroça na estradinha de terra com seu neto, havia ali na vereda bem de lado dos matos uma tosca cruz de madeira inclinada. “Oh vô, o que foi isso em vô?” “Meu filho, foi aqui onde os dois touro brabo se bateram e aqui ficaram!” O menino ficava sempre pensativo com aquilo… Imaginava como devia ter sido aquele tamanho ato de violência e tragédia. As agonias daqueles momentos …
– Pois bem meu filho, repare que esse acontecido foi do jeito que irei dizer!
Gurgel começou a contar. Contou que, já havia uns três anos atrás, ali mesmo no interior que moravam, existia um homem baixo com fama de valente e traços de covardia. Devia possuir uns trinta e poucos anos. Nome dele era Gabriel. Era do tipo que só andava olhando para o chão. Quem viesse caminhando na direção contrária esbarrava nele se não desviasse. Qualquer um desviava, ele não. Olhava para os outros com olhar de cão desconfiado. Sujeito com traços de sagacidade duvidosa, lembrando sempre alguém que se esconde ou trama algo sozinho. Gostava de brigar de faca, de preferência com alguém que tivesse medo e quisesse correr dele. De frente ele não chegava não pois tinha medo de morrer primeiro. O que tinha de baixa estatura tinha de covardia. Havia também um sujeito bem mais velho de nome Barbosa. Esse já estava na casa dos sessenta anos. Barbosa possuía uma mercearia que vendia fumos, cachaça, cereais e embutidos diversos. Ali logo na porta dava para sentir um cheiro que lembrava pimenta e fumo envelhecido. Era um aroma agradável que lembrava antiguidades e calmaria. Barbosa era o extremo oposto de Gabriel. Alto, corpulento e valente se fosse preciso. Também gostava de uma faca… Por vezes andava com uma na bainha amarrada ao calção que vestia. Era moda e cultura do povo ali ter sempre uma faca por perto. “Todo macho valente meu filho, e que zele por sua defesa, tinha e ainda tem isso de ter uma boa peixeira afiada sabe… Eu num vejo necessidade disso não… O homem só arruma briga quando ele quer, quando o orgulho ruim fala mais alto que a própria vida…” Dizia o velho Gurgel para seu netinho que lhe ouvia atentamente.
Barbosa detestava Gabriel desde o dia em que este quebrou um de seus copos com cachaça e disse que seu produto era de ruim qualidade. Barbosa bateu forte no balcão e mandou que Gabriel saísse dali e deixasse de conversa mentirosa. Ele queria era beber de graça. Se os outros elogiavam, porquê só ele tava falando aquilo? Sendo que já havia bebido muito por lá outras vezes? Barbosa odiava covardia e também nunca gostou do jeito dele, via ele como uma pessoa de má caráter, que para fazer o mal a alguém não pensava duas vezes. Nesse dia Gabriel saiu da mercearia com uma cara de riso e olhando para baixo, já tonto de cachaça. O problema entre os dois, se deu mesmo foi numa tarde, já quase anoitecendo. Naquelas horas de crepúsculo em estradas de mata, onde com a ausência de luz, cada sombra ou movimento lembra algo perigoso e desconhecido. Assusta qualquer homem que seja. A única luz que pode se fazer presente é a da lua… Sem ela, é escuridão total junto com o som penoso dos bacuraus em sintonia ao incessante cochicho dos grilos e das cigarras. A questão naquela tarde teve início quando, a esposa do velho Barbosa vinha por uma estrada da casa de uma velha amiga. Ela, como sempre muito vaidosa, andava sempre arrumada e com perfumes caros que economizava o quanto podia. Essa estrada ficava no mesmo sentido onde Gabriel morava. Ao passar por ele ouviu um gracejo e levou isso muito a mal, já que ela também detestava o sujeito. “Tá linda em boneca, o que o velho do Barbosa não aproveita em?” Ela somente olhou para ele com uma cara ruim. Mas disse baixinho “Quero ver só se isso vai ficar assim, seu canalha! Hoje tu vai ver quem é o Barbosa!”
A mulher chegou em casa e foi logo dizendo ao marido, afim de que ele fosse tirar as devidas satisfações com o insultador.
– Ele disse isso, aquele cabra safado?
– Disse sim, e ainda me chamou de vadia! Dizendo que você não me merece e muito menos merece a vida mansa que tem! Aquele Gabriel é um grande canalha Barbosa, tu vai deixar ele nos tratar assim? Já tá na hora de mostrar pra ele o que ele merece!
– Eu sei que ele não presta mesmo… Mas se deixar pra lá ele foge de medo…
– Foge de medo? Não é tu que tá com medo Barbosa? Ele foi desrespeitoso comigo e tu vai deixar barato?
– Ora mais que porra, Helena! Tá ficando doida dizer um negócio desse mulher? Pois hoje tu vai ver quem tem medo aqui! Hoje eu mostro e garanto que ele guarda a faca na bainha!
Barbosa pegou uma lamparina, botou uma blusa, e saiu com sua peixeira de lado. Já era quase noite. Barbosa ficou possesso com o que sua mulher havia dito. O ódio havia se consumado. Ela até deu um risinho de malícia quando ele saiu de casa, queria ver briga, seu marido matando Gabriel e lhe contando como foi… O maldito ego humano gritando insensatez mais uma vez.
Barbosa foi no quarto, pegou seu porrete de madeira de jucá refinada no fogo, uma lamparina a gás e saiu com sua peixeira amarrada na cintura. Pegou a direita pela estradinha de terra, onde havia um pequeno aglomerado de árvores e moitas que tornava ali dentro mais escuro ainda. Caminhou, caminhou. Seu ódio crescia assim como o caminho longo que percorria. As cigarras com seu chiado arrastado e alto cantavam em um coro que assustava. Barbosa com a lamparina acesa na mão e seu porrete de jucá duro como ferro, não pensou em nenhum momento que a luz no escuro cegaria ele mesmo e seria como a luz de uma estrela para o astuto Gabriel. Deu mais alguns passos, e antes que pudesse mesmo pensar, Gabriel saiu da moita abaixado e cravou a faca na coxa direita de Barbosa. Foi como uma pontada quente de uma agulha. Barbosa gritou, mas não foi um grito alto. Com a angústia de saber que com aquele golpe ali ele não teria mais salvação, foi abafado dentro de si qualquer reação do que seria um pedido de socorro. Nesse instante, Barbosa desceu sua mão pesada contra a face de Gabriel que caiu ao chão com força. O homem grande do jeito que era, foi para cima daquele pequeno sujeito maldoso com o mais puro ódio e desgosto refinado. Jogou o porrete no chão. A luz da lamparina ainda iluminava aqueles dois touros que se debatiam com violência no chão em meio a poeira que subia. Barbosa segurou na mão de Gabriel afim de arrancar aquela faca e também assim dá o golpe final no seu inimigo. Mas Gabriel segurou de uma forma que jamais saiu de sua mão. Mas ao mesmo tempo que se segurava, ia se rasgando todo com inúmeros golpes por toda parte de seu corpo. A fatalidade ia se fazendo aos poucos com os pequenos golpes profundos. Depois de muito lutar, Barbosa caiu de uma vez por cima de Gabriel. Este apenas empurrou com dificuldade aquele corpo pesado de cima dele. Gabriel com certa relutância sentou na estrada e pôde ver seu corpo perfurado em muitas partes. Levantou com esforço mas em dois metros caiu e se pôs a gemer de dor. Não foi uma morte rápida como a de Barbosa. Em um pequeno intervalo de tempo chegou ali a filha de Barbosa acompanhada por sua mãe. Gabriel gemendo de dor e sangrando bastante suplicou a garota que não lhe fizesse mais nada, já que ele também já não ia durar mais muito tempo.
– Tu matou meu pai seu desgraçado! Agora eu te dou o mesmo final que tu deu a ele!
Com isso ela puxou uma peixeira de sua cintura e antes que a mãe tentasse impedir aquilo, ela cravou a faca no pescoço de Gabriel. Toda a cena se consumou ali. Poucos instantes depois ela fugiu e a mãe ficou só. Chegaram muitos curiosos e também a polícia.
– E foi assim meu neto, que apareceu ali aquelas cruzes… Os dois touros se bateram por ali já faz um tempo!
– Eita vô, que coisa mais triste… Então foi assim que apareceu as duas cruzinhas… O senhor tem outra pra contar aí? Anda, anda, tem sim! O senhor sempre sabe muita história boa!
– Ora, ora essa menino… Acho que sei mais uma… Na verdade, logo duas… Pegue um pouco mais de fumo pro vovô que vou contar. A primeira foi o seguinte…
Gurgel na rede com seu neto Doso sentado de lado, preparou ali seu fumo e iniciou mais uma história.
Contou que há alguns anos atrás na serra de Itapajé, havia ali um pai e uma filha pequena que viviam da venda de muitas coisas entre alimentos e uso geral. Vassouras, doces artesanais, ratoeiras, ciscadores e muitas outras coisas. Vendiam e transportavam tudo isso numa carroça com um burrinho que já era muito viajado. Em uma certa tarde já quase anoitecendo, começaram então a descida daquela serra que dava umas meia hora de caminhada. A carroça com seu barulho de ferro velho, as coisas balançando, a menina comendo algo para enganar o estômago que já roncava, o pai já velho olhando para o horizonte distante onde os crepúsculos no céu já eram muitos. Sempre desciam aquela serra sozinhos, nunca aparecia ninguém para acompanhá-los, conversar alguma coisa diferente, fazer uma companhia na noite que já caia, e os pássaros cantavam distante… Pois nessa tarde depois de um certo tempo de caminhada, um pouco ali a frente da carroça caminhavam também muitas pessoas. Eram coisa de dez pessoas ou mais. E na mesma medida que caminhavam lentamente, tangiam burros que pareciam carregar carroças com vários produtos. Conversavam coisas que o pai e a menina não conseguiam entender. Não dava para entender nem se apurasse os ouvidos.
– Olha papai, um monte de vendedor também! Será que vão pro sertão vender coisa como a gente?
– Isso que não sei minha filha… É estranho de mais… Primeira vez em tantos anos que alguém acompanha a gente na descida da serra, nunca tem ninguém e a gente sempre tá sozinho… De repente surgiu esse povo, não me dei nem conta e lá estavam eles!
– Eu também só vim ver agora papai… Mas deve ser comerciantes novos, porque eles tem carroça e burros! Tem muitos comerciantes nesse mundo…
– Sim é pra ser comerciantes mesmo… Pois vamos tentar alcançar eles que é melhor pra gente… Seria bom pra gente fazer amizade com eles e também se a gente não chega na frente, eles pode deixar a gente sem venda por uns dias… As carroça deles tão tudo lotada!
Nisso o pai e sua filha apertaram o passo afim de chegar perto daquela pequena multidão de andarilhos e assim quem sabe, fazer amizade, saber quem era aquele povo desconhecido. Caminharam mais rápido. Apressaram o burro também. Mas na medida que se apressavam na caminhada, aquele povo desconhecido também se apressava igual. E continuavam apressando os burros e as carroças e sempre conversando entre si. A conversa que tinham nem pai nem filha entenderam nenhum momento o que seria. Alguns até cantavam alto e davam gargalhadas. Mas iam sempre a frente e jamais olhavam para trás.
-Ei, vocês, podem esperar por a gente?
Gritou o pai
– Acho que eles não ouvem pai… Já gritou foi muito e eles só ignora a gente…
– Vamos dá uma corridinha filha, pra ver se a gente alcança eles!
E correram com um pouco de esforço. Mas nada. Nada fazia chegar mais perto daquele povo. Na medida que corriam aqueles desconhecidos também corriam. Era como algo ensaiado.
– Vamos parar filha, a gente tá só se cansando… Adianta mesmo não… Eles correm sempre mais do que a gente…
Até que um pouco a frente já quase terminando a descida daquela serra, havia um pé bem grande de Juazeiro. Um frondoso Juazeiro. E de repente um silêncio. Pai e filha pararam no mesmo instante e ali ficaram por um tempo olhando para a frente. Já era noite. Aquele povo desconhecido sumiu imediatamente debaixo daquela árvore. Ninguém mais foi visto. Foi assim, sem mais nem menos. Começou logo um vento forte. Como aquela ventania que vem antes de um grande temporal.
– Vamos correr um pouco filha, vamos que vai chover e é forte!
– Vamos papai… Eu tô com medo de mais disso que a gente acabou de ver… O senhor sabe o que foi isso?
– Eu não sei não minha filha, mas sei que foi esquisito de mais e até eu com a idade que tenho nunca vi nada parecido! Me arrepiei foi todo agora! Juro que nunca vi uma assombração dessa! Mas vamos que os anjos do céu estão com a gente, nossa proteção minha filha!
– Que cheiro mais esquisito quando a gente passou debaixo da árvore pai… Não era cheiro de Juazeiro, era algo que irritava meu nariz e me dava mais frio ainda…
Logo pai e filha desceram aquela serra. Ainda refizeram aquele trajeto subindo e descendo por muitas outras vezes… Mas nunca mais presenciaram o evento assombroso daquela tarde marcante.
Depois, o velho Honório Gurgel já emendou outra história para o neto. Dessa vez contou que há um tempo atrás, uma senhora que sempre comprava suas coisas em um local distante dali, lhe relatou uma coisa intrigante e assombrosa. Essa senhora todos os dias, depois de tanto trabalho, esperava seu marido alcoólatra que sempre chegava tarde da noite em sua carroça. E aquilo já se repetia fazia tanto tempo… E ela aceitava. Não sabia se por medo, ou se por gostar de mais do velho e não reclamava de nada. Mas era um sofrimento para ela. Quando ela esperava em frente sua humilde casa, era sozinha naquela rua deserta. Uma estrada quase isolada, que havia poucas casas. Se olhasse para o final da rua só se via escuridão e muitas árvores. Certa noite já quase duas horas da manhã ela esperava novamente ali em frente sua casa. Todo mundo já dormia. Olhava para o chão, olhava para uma esquina ali próximo que, descendo por ela ia dá para uma lagoa. Essa esquina era continuação para outras ruas.
– Até quando meu Deus, eu vou ficar nessa canseira desgraçada que tanto me faz sofrer? E toda vez fico aqui esperando sozinha, nada pra conversar comigo, me dizer algo que diminua esse sofrimento…
Ela olhou para a esquina que era iluminada por uma fraca luz de um poste. Foi então que viu uma mulher absurdamente gorda e com uma enorme blusa que cobria todo o pescoço, os braços e chegava até os pés. Essa blusa era tão grande, que parecia se encher de ar com o vento da noite e deixava a mulher com a aparência de um enorme balão. Era algo que incomodava em ver. A mulher não olhava para os lados e nem para a senhora. Apenas se mantinha com os braços esticados para baixo e com o olhar fixo para a frente.
– Olha só, alguém por aqui essa hora da noite? Seria bom que pelo menos conversava comigo… Quando aquele troço chegar bêbado vou ter que puxar ele da carroça, largar em cima do papelão e lá dentro ele dorme… Será que ela também não tá esperando o marido dela?
Nisso a senhora foi andando na direção da mulher da esquina. Queria saber melhor de quem se tratava, quem sabe fazer uma nova amizade. Ela olhou para a esquina e não havia mais nada ali que não fosse alguns mosquitos rondando em baixo da fraca luz do poste. Mulher nem gorda nem magra estava mais ali. Só o silêncio da noite… A pobre senhora nesse instante se arrepiou dos pés a cabeça. Devido ao extremo medo, suas pernas foram invadidas por uma enorme sensação de peso que impossibilitou que ela corresse naquele momento. Foi voltando para casa arrastando as pernas com esforço. Trêmula. Se chegasse algo ali para lhe causar algum mal teria dado tempo, pois ela mesmo estava sem forças. Era vagaroso de mais, como dentro de um sonho profundo que você tenta fugir e algo invisível lhe prende, lhe puxa, lhe adormece… Ela mesma abriu os olhos com força para ver se não acordava distante daquela situação. Teve a sensação de já está ali há muito tempo, tentando correr e fugir para longe. Longe mesmo até do casebre em que morava. Mas quase não saía do canto. Abriu a porta de sua casa, se deitou e se pôs a rezar. O marido bêbado quando chegasse que dormisse do lado de fora. “Vou embora daqui pra nunca mais voltar!” pensou ela.
Depois desses contos seu neto Doso foi brincar lá fora e o velho Honório dormir um pouco. O menino passava horas e horas andando entre as matas e pensando naquelas histórias que ouvia… Em sua imaginação de criança aquilo ganhava muita força. Meditava naqueles casos por horas… Se sentia sempre mais adulto, mais esperto, mais corajoso… Mas também sentia que tudo era mais fantástico, bizarro, dava calafrios e enchia sua mente de reflexões lúcidas de medo e mistério.
Muito bons os contos. Muito bem escrito e gostoso de ler. Eu gostei muito. Parabéns!
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Muito grato meu bem!
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Texto muito envolvente. Parabéns.
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Parabéns pelo texto, Artur. Uma leitura muito envolvente que nos permite adentrar ao mundo das memórias vivas.
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Gratíssimo mesmo que tenha gostado assim ❤️
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