Culto da praça

Tenho medo da noite… Medo do que não é noite… Franz Kafka

Heloísa e sua filha faziam um pequeno culto numa manhã nublada de sexta, na praça dos eucaliptos. A praça em frente ao banco do Brasil, fila enorme do lado de fora. Na rua que dividia o banco da praça, carros e rostos estranhos que sempre procuram por algo e vez por outra se esbarram ao passar pra lá e pra cá nos sentidos opostos.
– Glória a Deus nessa manhã aleluia! Estamos nesse culto aqui meu Deus, que tudo que venha a ser feito e dito aqui meu senhor, que seja para tua honra e glória!
A mulher gritava ao dizer isso, como se o microfone e toda a força da caixa de som ao seu lado não fossem nunca suficientes. Sua filhinha estava bem ali em pé ao seu lado com uma bíblia e um livreto que chamam de harpa cristã nas mãos.
– Estamos aqui em três, mas pela honra do teu nome meu senhor, quem tiver ouvidos ouvirá o que tu tens a dizer!
Era visível um certo teor de desespero em sua voz e ânsia em ser escutada. Porque não tinha só um pouco de calma? Era a impossibilidade de ser ouvida por algo ou alguém ou apenas a euforia de uma emoção exacerbada? Havia ainda outra mulher com as vestes parecidas da que gritava ao microfone, mas esta se mantinha um pouco mais afastada para trás logo abaixo de uma árvore. Alguns que passavam falavam contra elas e quem não falava apenas olhava meio torto. Outros apenas ignoravam e seguiam. Apesar de ser um interior o estresse urbano ali ainda era grande.
– Olha o tamanho da criança… Num instante já pegou a loucura da mãe, certeza…
– Meu amigo… Porquê essa mulher não vai gritar dentro da igreja dela em? Parece uma louca, cruzes! Acho engraçado esse povo que se sente portador de uma verdade absoluta a ponto de querer enfiar isso goela abaixo dos outros! Haja paciência viu!
– Aleluia meu senhor, eu ouço tua voz que fala por meio de tua serva! Glórias a ti!

– Como é? Ele fala por meio dela? Se é um Deus, porquê diabos ele precisa de um porta voz? Porque não vem ele mesmo e fala pra quem quiser? Hahaha!
– É palavra de Deus… Mas prefiro minha religião que já estou! Não troco o certo pelo duvidoso…
Tais diálogos podiam ser ouvidos baixos tanto na calçada frente ao banco como em algum local da grande praça repleta de enormes pés de eucaliptos com inúmeras folhas cheirosas pelo chão.

A menininha que estava ao lado da mulher recebeu o microfone de repente e se pôs a cantar. Deveria ser sua mãe… Não olhava para a harpa nem nada. Já havia decorado fazia tempo. Cantava um tanto fora do ritmo como qualquer canção que uma criança normalmente canta. Havia logo na esquina da praça um quiosque que há muito estava desativado. Suas paredes pichadas com algo vulgar e cheias de marcas de infiltrações com musgo denunciavam de longe que as comidas ali antes vendidas não deram muito certo. Por algum motivo faliram e ninguém mais quis assumir o ponto de vendas, do contrário não estaria daquele modo. A prefeitura tinha de tomar alguma solução e logo. Falavam que logo se tornaria outro quiosque bonito e arrumado com caldos e salgados a venda, como era antes. Logo logo mas nunca tomavam decisão alguma. As portas de madeira continuavam ainda intactas apesar de bem velhas e gastas. De certo ninguém entraria ali a menos que arrombasse com violência. No máximo algum cachorro ou um bêbado passaria uma chuva ali em baixo do curto alpendre que havia.
– Trabalhar, e orar, na Seara e na vinha do senhor! Meu desejo é te amar e ocupada quero estar!
A menina continuava a canção. A mãe acompanhava também de forma mais baixa e cobria rapidamente algum erro de memória que a filha fizesse.
– Não é melhor só a senhora…?
A menina quis que a mãe passasse a cantar mas foi interrompida imediatamente e continuou. A mulher que estava mais atrás apenas mechia a boca na letra do que era cantado. Ainda se mantinha em baixo da árvore com uma bíblia na mão. De repente, a porta do velho quiosque se abriu e três homens vestidos de terno e gravata com óculos escuros saíram dali de dentro. Eram perfeitamente idênticos. Ou eram trigêmeos ou usaram forte maquiagem e roupas afim de se tornarem semelhantes o máximo possível. Deveria haver algum propósito para aquilo… Ou não. Saíram um por um como se já houvessem ensaiado aquele momento e situação muitas e muitas vezes. Fecharam a velha porta novamente mas não era possível ver chave alguma nem por quem tivesse tão próximo deles. Cada qual com as feições do rosto mais sérias que o outro.
– Meu desejo é te amar e ocupada quero estar, sim na vinha do senhor!
Os três homens seguiram para o lado da mulher que logo pegaria novamente o microfone e retomaria a pregação.
– Oi, digam? Vieram aceitar o salvador hoje amados?
– É necessário que a senhora venha imediatamente com a gente e sem perguntas.
Um dos homens segurava o braço da mulher e olhava firme para ela. O outro tirava o microfone da garotinha que cantava, e botava cuidadosamente ao chão. A menina olhou para eles sem compreender nada.
– É de suma importância que sua filha venha também, caso queira saber.
– E essa outra da árvore também, venha!
– Mas ir para onde meus amados? Não posso ir para lugar nenhum e ainda mais com minha filha! Estou fazendo a missão que Deus deixou para os dele! Vocês me conhecem por um acaso? Como assim?
– Acreditamos que você tenha um filho, certo? Viciado… Ele está com uma dívida enorme de drogas e parece que vão matá-lo.
O homem que foi buscar a mulher que estava em baixo da árvore voltava segurando o braço dela.
– É. Talvez esta hora ele já tenha morrido. Faz horas que levaram ele para aquele terreno isolado.
A mulher pôs as mãos na boca e começou a chorar e se tremer. Queria voltar para casa o quanto antes e ver se estava tudo bem pelo menos como ela havia deixado logo mais cedo.
– Meu filhinho? O Daniel? Não me falem isso pelo amor de Deus! Quando saí ele estava deitado e disse pra mim que nem ia sair hoje! Aonde ele estar? Eu vou, eu vou com vocês então!
Seguiram todos os seis rumo a rua que era perpendicular a que ficava frente ao banco. Muitos carros passavam pelas duas vias. As duas bíblias e a harpa haviam sido deixadas em cima da caixa de som lá na praça. O microfone ao chão. Nada foi retirado.
– Ué… Alguém viu a mulher que gritava ali até agora a pouco?
– Sei lá… Talvez tenha ido ao banheiro… Sumiu de repente…
– Até a garotinha sumiu, o que foi isso?
– Olha ali as coisas deles no chão! Cadê eles?
– Vai ver foram arrebatados, pode ser um sinal de Deus!
Comentavam os transeuntes que por ali conversavam. Os seis desde que saíram da praça já andavam por umas meia hora. Entraram e saíram de becos, vielas e ruas não tão largas. Passaram por outras duas praças de poucas pessoas e ao lado de um canal altamente poluído e fétido. Até que viram um bueiro desses que ficam logo ao lado das calçadas e que, quando chove, toda uma enchete de água e lixo escorre com violência e rapidez para ali dentro.
– Estendam o braço rápido pra tomarem essa injeção. Depois entrem as três!
– Injeção? Mas que injeção é essa meu senhor? – falou a mãe da garotinha –
– Mamãe, eu tenho medo de agulha!
– Lá dentro vocês ficarão sabendo para que serve… Bom, pelo menos imagino que saibam… No entanto é necessário, e necessário que não façam perguntas e hajam rápido!
As duas mulheres estenderam o braço e receberam a injeção que dentro da siringa, possuía um líquido azulado forte. A garotinha se pôs a chorar com recusa, mas logo recebeu também uma rápida agulhada.
– Entrem agora! – disse o outro homem-
– Entrem, já estamos quase lá! Tem um outro culto aqui pra gente, só aguardem. E é bom se forem apreciando esse
– Estão loucos? Meu filho estaria aí dentro? E tem como entrar aí?
Neste momento, algo fez com que as mulheres e a criança que já chorava, não oferececem mais nenhuma resistência em entrar ali, pois foi essa a atitude que tomaram em seguida e de forma até brusca e inesperada. Como se já estivessem cansadas de oferecer oposição contra aquela inusitada e inexplicável situação que haviam lhes tirado do conforto da praça.
Primeiro entrou a mulher e a filha com enorme dificuldade, depois a outra que deveria ser um irmã ou amiga, entrou também. Os três homens fizeram simultaneamente um estranho sinal com as mãos em direção a um terreno que havia logo a frente do bueiro, e em seguida desceram com incrível habilidade o bueiro que exalava um horrível fedor abafado. Carros passavam naquela rua também. Quem ali passasse possivelmente ouviria sons de muitos passos e vozes altas como de uma multidão que corriam abaixo da calçada dentro do enorme e escuro bueiro. Sons metálicos como de muitas panelas batendo e um tanto musicais ecoavam por ele inteiro, que daria para imaginar a distância que percorria para bem longe. Até que gradativamente, tudo ali converteu-se em um enorme silêncio sepulcral.

Em um terreno grande e dominado pelo mato logo ali próximo, dois jovens discutiam. Um implorava pela vida que iminentemente seria ceifada sem piedade. Um de joelhos o outro em pé com um facão na mão.
– Olha aqui seu viciado filho da puta! Eu vou te degolar agora pra tu aprender a nunca mais dever ninguém viu? Tá pensando que pode pegar droga lá na boca e deixar dependurado com promessada fiada é? Os cara tudo tão querendo te pegar! Mas eu vou logo adiantar o serviço e pegar uma grana pra isso!
O outro jovem de joelhos só chorava e tentava limpar seus joelhos da lama que lhe sujava.
– Não cara, pelo amor de Deus! Eu tenho minha mãezinha, não quero que ela saiba disso, que morri assim! Eu pago, eu pago! Vamo dá um jeito nisso, nem que eu vá embora pra bem longe!
– Porque tu fica se limpando da lama quando ela já tomou conta de ti? Tem problema com lama e não pensou antes de entrar nessa merda toda? Zé Mané! Agora é tarde!
O jovem levantou o facão como faziam os antigos carrascos no palanque da execução. Daria o golpe final. No entanto nesse momento, algo lhe fez parar e olhar fixamente para a frente, tentando tirar alguns galhos dos matos para poder enxergar o que acontecia na rua lá da frente que não era tão distante. O que estava no chão retirava lentamente as duas mãos da cabeça tentando entender o que havia acontecido já que sua sentença não se consumara.
– Quer saber cara… Na real… Deixa pra lá… Vou mais te matar não… Vai valer a pena mais não… Só te aconselho que tu meta o pé daqui pra bem longe, beleza? Vai! Pega um dinheiro, carona ou sei lá o quê e vaza! Quero mais papo com ninguém também não, tô puto com tudo isso já. Anos e anos nisso e tu é o primeiro que não vai morrer… Eles vão achar que te matei e dá tempo de tu fugir! Tô é com fome… Bora comer algo ali? Eu pago. Depois tu vai embora…
– Caraca … É sério isso mano?
Ele levantava ainda devagar e trêmulo sem crer direito no que estava acontecendo. Sua vida poupada? Mas porquê? Havia tido algo em troca daquilo mesmo sem ele saber?
– É cara, é sério… E depois, minha vontade de te matar passou mesmo… Nada a ver, tou mais afim de nada também não, com interesse em nada mais! Pro meio dos infernos com tudo isso aqui! Essa realidade de merda que a gente nasce sem nem ter escolhido! Tô de saco cheio já dessas merda toda! Ódio e revolta, só isso que tem me dado, só isso! Porquê também não se revoltar contra aquilo que sou um mero escravo? Na minha alma grita sempre a mais funda revolta cara… E se eu fosse te matar eu teria que em seguida me matar também, já que o erro também faz parte de mim… Não faz sentido… Só tô afim mesmo de comer e conversar, sair por aí sem rumo certo… Sei lá… Ainda né… Vamo nessa!
– Pois bora sim mano, bora sim! Vou ser teu eterno devedor … Bora nessa! Lá pelo centro, na praça dos eucaliptos deve ter algum quiosque daqueles e a gente come!
Os dois andaram um pouco até sair do emaranhado de matos e espinhos. O facão ficara esquecido fincado lá no chão. Passaram por baixo de um buraco no muro e se dirigiram para a praça dos eucaliptos. Foram até o quiosque que estava com suas paredes pichadas e acabadas com um forte ar de abandono. Mas na frente, suas portas roliças estavam levantadas. Dentro, uma senhora com um pano no ombro, ajeitava alguns salgados numa pequena vitrine e colocava umas garrafas de suco em um freezer.
– Aí tia, me der aí quatro salgados e dois sucos… A gente tá com fome né não Flávio? Esse rapaz aqui hoje não comeria mais, mas deixa pra lá… Vamo saborear algo bom e isso que importa!
– É isso aí mano, isso mermo!
– Ei tia… Esse quiosque aqui não tava fechado não? O bicho tá caindo os pedaços… Se a senhora quiser me dá uma diária de trinta eu deixo tudo brilhando…
– Tava sim meu filho… O dono eu não sei quem é já que quem falou que iriam abrir era uma velha igual eu que mora perto lá de casa… Aí vim mais cedo e abri aqui, trouxe as comidas que ela me deu e algo mais. Acho que vou ficar fixa aqui sabe… Ainda vamos pintar e retocar aqui logo mais, pelo menos creio eu né…
– Ah, entendi…
– Cara não vejo a hora de ver a mãe… Quero abraçar forte ela e pedir perdão… Ainda bem que não foi dessa vez… Vou é tentar parar com esses lance errado de droga, até me internar se for preciso… Na moral quero sair disso, é que não vejo outro horizonte, me sinto e me vejo como um perdido miserável… Tenho desgraçado minha vida já faz tanto tempo cara. Há tanto tempo já que me corto e sangro e continuo na mesma merda com isso… Quero ver a mãe, acho que ela já tá em casa essas horas!
– Pois é viu, tu tem razão mesmo… E ela tinha ido pra onde? Sabe?
– Ela tinha me dito que ia fazer um culto numa praça, cara… Eu só não sei se era nessa aqui, não lembro mais não… sacas?
Pela praça e na rua os transeuntes continuavam com seus passos apressados e conversando entre si. Na calçada da praça bem ali, restavam ainda uma caixa de som com duas bíblias e uma harpa em cima. Ao chão um microfone solitário. Nada havia sido tocado nem levado. O dia seguia aparentemente normal por ali.

2 comentários em “Culto da praça

  1. Uau, que história mais louca, esse cara teve sorte de não morrer, no começo achei que a história iria ser simples, mas dps surgiu essa parte em que apareces uns caras e tal, achei muito interessante!!!

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