Angústia; um jovem e um gato.

A história a seguir, narrada de forma resumida como todas as outras histórias em que se teve pressa, foi vista por mim em um futuro remoto. Um viajante do tempo de nome Nebuloso. O tempo não esperou, e não tive tempo de lembrar meu sobrenome mas recordo bem do ocorrido em questão. E sim, viajante do tempo pois vi tudo em vários recortes estranhos de realidades diferentes. Tenho duas histórias para contar antes de desaparecer. Quinta-feira , Julho de 1996. 19:00.

Eram mais ou menos duas e quarenta de uma tarde de quarta-feira, quando uma forte queda de energia elétrica aconteceu, tomando conta de toda a pequena cidade de Tianguá. A falta de energia nesse dia se fez até a madrugada do próximo dia quando finalmente voltou. Nessa mesma tarde de vento quente, um repetino acidente com vítimas fatais ocorreu em uma rodovia onde se via uma placa em azul escuro, de informação ” Limite de zona urbana – quilômetro 187 “. Sim, foi em torno dessa hora sob o escaldante sol de verão do nordeste, onde as ervas daninhas sufocam as outras plantas e os carrapixos espinhosos grudam muito mais, em quem passa despercebido por entre o acostamento de terra daquela mesma rodovia de muitos transeuntes rotineiros.

Exatas uma e quarenta, uma hora antes da fatídica queda de energia, trabalhava alí próximo àquela mesma rodovia o jovem Reynold. Era um cara de aparente melancolia reflexiva, mas também de um coração nobre e humilde. Trabalhava há pouco mais de três meses em uma fábrica de sandálias femininas. Reynold trabalhava ali naquele momento rapidamente como todo dia, onde punha os selos de verificação nas palmilhas pré-prontas, atencioso para vacilar em nada, em uma linha de montagem fabril. Nesse dia ele estava para variar, bastante chateado. O gerente de olho azul com uma postura de quem sempre olha de baixo para cima com uma cara azeda e enclinado para frente, tinha forte sotaque sulista e um dedo da mão amputado. Era o belo de um estúpido e prepotente. Havia chamado atenção do jovem na frente de todos os outros logo cedo, apenas por ele ter desacelerado um pouco seu ritmo de colagem dos selos. Reynold por inúmeras vezes, ia ao banheiro com o intuito não de usá-lo, mas de tão somente ter o prazer de descansar por um instante suas pernas doloridas, sentando-se sobre a tampa do vaso. Tinha um tempo certo de alguns minutos para idas ao banheiro, pelo que sempre reparava rigidamente o olhar vigilante do gerente. O odor forte produzido pelos produtos alí usados em junção ao exagerado som gerado pelas muitas máquinas, só faziam Reynold se sentir pior, mesmo usando máscara e protetor auricular. Não era nenhuma novidade para todos os modos, toda aquela pressão advinda também como reflexo de uma sociedade decrépita e já apodrecida por assim dizer. Fragmentos da chamada “sociedade disciplinar”. Certamente Reynold via todo o sistema daquela fábrica ali como um fruto do trabalho alienado, uma exploração remunerada. Na verdade, ocorria ali dentro o fenômeno da reificação: a coisificação de humanos e a humanização das mercadorias.

Suas mãos e braços estavam bastante cansados visto a posição baixa que ele tinha de ficar. O gerente era assim mesmo, dali para pior. Chamar atenção é algo necessário em muitas ocasiões, mas ele abusava de poder ali dentro. Gritava, xingava, ameaçava despedir, quem errasse o menor que fosse. Toda uma humilhação. Bastava algum trabalhador olhar para o lado apenas. O perfil típico de um tirano no qual todos respeitam por puro medo, jamais por afeto. Um bruto incapaz de ocupar tal posição que ocupava. Reynold pensou muitas vezes e pensava novamente em naquele momento, pedir sua demissão. Mas ao mesmo tempo lembrava que tinha sua avó que estava prostrada havia já algum tempo, a casa que era alugada, e todas as outras contas que um pobre trabalhador sofria e sofre para quitar. E também sua mãe que fazia algumas faxinas umas poucas vezes ao mês, e que ele a ajudava. Moravam os três apenas e o mariscado, um gatinho cor de chumbo que era muito apegado a Reynold.

Todos os dias quando chegava cansado daquela fábrica que mais parecia uma prisão torturante, ele sentava no sofá da sala … Aquele mais baixo e meio rasgado. E o mariscado parecia saber na hora. Saía correndo como uma criança feliz e ingênua, pulava na perna do dono, e alí ficava recebendo carinho… Há de se dizer que muitas vezes os dois dormiam juntos. Até Reynold levantar e dizer ” Anda bebêzão, sua ração tá no prato!” Mariscado acompanhava o garoto, e comia. Reynold adorava ficar observando esse ato de necessidade do seu gatinho, e ficava ali as vezes, até que ele terminasse sua pequena refeição. Era como uma terapia para o rapaz.

Reynold ainda enfrentava naquele momento outras guerras mentais. Na noite passada, seu relacionamento amoroso teve um repetino fim. Quem rompeu foi sua parceira mesmo, sem mais nem menos, algum motivo aparente… Foi estranho, isso achei. Não parecia ser um amor líquido como tanto se ver hoje, que se desfaz na mesma rapidez com que começou. Todos os dias se ver. Muito pelo contrário. Demonstrava deveras sua solidez. Pois visto que eles estavam bem até então, foi algo bem súbito mesmo.

” Talvez, quem sabe, pela minha humilde condição financeira? Não sei, talvez não… Ela me falou dos pais dela, que estavam discutindo… Ela achava melhor assim para nós… Pior que já tentei ligar afim de que a gente conversasse como ela pediu, mas o celular deve está desligado, ela não atende. Como eu gostaria de ir lá em sua casa agora meu Deus! Mas pareço estar preso aqui! ”

Reynold pensava insistentemente nisso e anseiava profundamente enquanto concentrava- se para colar os selos nas respectivas palmilhas, para que não houvesse mais nenhum erro por ali. O pobre moço já encontrava-se amargurado de mais para mais alguma possível desventura. Foi quando o universo pareceu lhe ouvir e conceder seu pedido e desejo. As máquinas ali a todo vapor quando de repente foram parando aos poucos até cessarem completamente. A energia elétrica da cidade havia caído. Reynold entrou no meio de dezenas de trabalhadores que largaram seus postos naquele momento e encaminharam-se para o portão de saída esperando ele abrir para finalmente, terem a liberdade de ir para casa. Alguns diziam entre si ” – Anda, abram esse portão depressa antes que a eletricidade volte e ele nos mande de volta para as máquinas!” Reynold e alguns outros riam daquilo, pois era verdade. O gerente tirano certamente faria aquilo mesmo.

Muitos foram de moto para casa, outros pela rodovia oposta à de reynold e os outros pelo sentido oeste onde havia aquela placa em azul, na qual foi testemunha inerte do tal ocorrido que já irei falar.

Por aquele trecho da rodovia algo diferente: uma não movimentação incomum, visto que ali deveria está bem mais movimentado já que os funcionários haviam acabado de largar do horário de serviço. Mas não. Reynold passava por ali para ir para casa quase que sozinho, não fosse por dois amigos que também trabalhavam na fábrica, virem a uns dez metros atrás dele. Os dois conversavam e um acendia um cigarro.

Reynold caminhava olhando para baixo pensando inúmeras coisas. Iria na casa de sua amada tentar conversar dali mesmo ou seria melhor ir logo em casa? Ele sentia que iria ficar tudo bem entre eles naquela noite ainda. Será que mariscado estava com muita fome? Mas o bixano podia esperar. Ele chegaria de tão cansado que tava e os dois descansariam juntos… E sua avó? Teria tomado o remédio na hora correta? As dores teriam acalmado mais? Ao chegar ele iria conferir também. Sua mãe as vezes esquecia da hora certa… Muitas preocupações para a coitada também, ele sabia disso. Reynold olhou para os céus e viu duas gaivotas que voavam em uma sincronia bem feita e cantavam alegremente. Incrível como aquilo lhe encheu de paz e lhe tirou um sorriso feliz, daqueles de lado… Dava para ver o quanto ele desejava ser uma delas… Quando ele baixou a vista e olhou em direção a rodovia, viu que bem no meio dela, onde se divide duas faixas de sentidos diferentes para os veículos, estava ali um gatinho.

Reynold devia está a uns quinze metros de distância ainda dele e falou baixinho – Ah meu Deus, ele vai morrer! Olha o caminhão que já vem se aproximando ali! Eu também jurava que o caminhão iria esmagar o pobre gato perdido naquele instante, mas não. No último segundo ele fez um movimento e o vento forte do arrasto só balançou o gatinho que miava desesperadamente, mas que nem por isso saiu do meio da rodovia. Reynold ficou feliz por aquilo. Acenou e sorriu amigavelmente para o caminhoneiro, que não teve tempo de responder visto a velocidade que passou por ali.

– Mas que diabos esse gato tem? Porquê ele não sai dali? Qualquer animal deveria sentir o perigo e correr, mas ele não!

Eu sempre achei que o gatinho achava mesmo que a real ameaça era o bondoso rapaz.

Pois quando ele se aproximou a uma boa distância do gato e fez menção de apanhá-lo, ele finalmente saiu do meio da pista e correu para o mesmo lado onde Reynold estava. Estava assustado e com seu mesmo miado perdido… Reynold pensou – Vou levar ele para casa. É uma vida igual eu, igual qualquer outra. Deve está com fome e com medo. Mariscado vai ganhar um irmãozinho!

Porém nesse instante, o animal não deixou que o jovem lhe segurasse, e saiu correndo por entre suas pernas onde voltou para o meio da rodovia. – Mas que droga meu! Ele está muito assustado! Porquê só quer ficar ali parado? Era como se o gato sentisse algo, como se chamasse Reynold para um último e inevitável evento do qual ele não queria participar sozinho.

O jovem rapaz errou naquele momento e teve o mesmo impulso que o gato. Correu atrás dele para o meio da pista, e incrivelmente conseguiu segurar. Seu plano teria dado certo se ele tivesse pensado antes. Mas naquele momento um outro caminhão vermelho carregado com carvão, se aproximou buzinando freneticamente e antes que Reynold pudesse correr ou esboçar qualquer palavra, o caminhão apanhou os dois em cheio.

Nesse momento do impacto, os dois corpos foram arremessados a uma certa distância. O corpo quebrado e rasgado do pobre rapaz, foi lançado em cima dos matos no acostamento. Alguns de seus membros foram arrancados. O pequeno gatinho foi atingindo apenas na cabeça e não foi esmagado, mas ficou se debatendo desesperadamente na pista até morrer. O caminhão como era de se esperar, nem bombeou com a batida. Ele jamais parou para prestar socorro. Era tanto sangue ali jogado, tanto mesmo, pelos céus… Os dois rapazes que vinham atrás de Reynold levaram a mão a boca, abalados e em choque com o que tinham acabado de presenciar ali. Um deles correu sem acreditar até o jovem, e quase não pode crer naquela terrível cena. O outro contatou o resgate, que em poucos instantes não era só mais um carro mas muitos outros incluindo polícia, perícia forense, e tantos curiosos que respeitavam a afamada e nefasta faixa amarela que indicava sempre naquelas circunstâncias, vítimas fatais. Todo aquele trecho que era o principal entre Tianguá e Viçosa , foi interditado por mais ou menos duas horas e meia.

Apareceu ali entre aquela multidão um velho amigo de Reynold também, que proferiu a frase de uma canção triste, isso também eu não poderia deixar de relatar. Os dois amigos gostavam muito daquela canção… -Meu amigo Reynold, partiu assim tão trágico? E tão cedo? Porque meu Deus, porque! Oh morte tu que és tão forte, que mata o homem, o gato, e o rato… Só te peço que se vista com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar também… E tendo dito isso, aquele homem bastante abalado, foi embora dali chorando. Não queria mais presenciar aquela tragédia. Talvez fosse até a mãe do jovem, afim de sentir e dar conforto.

Nesse instante os peritos puseram o corpo do gatinho nos matos do acostamento com visível desdém e um deles falou -Quem sabe não revive, não é sempre dito que gato tem sete vidas?! E o corpo de Reynold, no compartimento de plástico que fez o transporte até o carro do IML. Nesse instante, um dos peritos pegou o celular do jovem que estava bem ali e incrivelmente intacto, apenas com alguns arranhões talvez, por ter caído em cima de uma pequena moita. Logo na tela continha algumas mensagens de destinatários diferentes. Eram algo assim: -Reynold, sou eu a Júlia. Vem aqui em casa depois do seu trabalho, tive uma conversa com meus pais e acho que agora será melhor pra gente, sempre vou te amar, nunca devíamos ter terminado! Vem logo! E outra que dizia -Reynold, sua avó piorou meu filho! Ela desmaiou agora a pouco aqui e eu estava sozinha! Vem logo preciso de sua ajuda aqui! Ela vai para o hospital agora!

E o gatinho mariscado? Esperaria para sempre seu dono chegar, quem sabe… Pôr sua ração no prato e dormirem juntos… Algo de cortar o coração. Naquele dia como já foi dito anteriormente, a energia elétrica só voltou na madrugada do dia seguinte. Não consigo nem mensurar em palavras como tenha sido depois daquela tarde amarga, uma noite escura ainda mais amarga. Já era quase noite, e lembro nitidamente do som distante de sirenes, choros, e aquela clássica movimentação de uma cidade agitada e sob o escuro de uma noite estranha e quente.

Créditos à arte de capa: Paulo Ricardo

6 comentários em “Angústia; um jovem e um gato.

  1. Escreve muitas vezes é melhor que falar, nos expressamos ainda melhor.
    Quando pessoas escrevem, criam um mundo.
    E quando essas pessoas dividem essas escritas com a gente, temos a honra de viajar por todo esse vasto mundo.
    Parabéns, Arthur!!!
    Suas escritas fazem a diferença no mundo de hoje.

    Curtido por 1 pessoa

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